Sempre que a história é contada, aqui e ali, pelos mais velhos que a conheceram ou ouviram, mas também pelos jovens que a procuram, eles semeiam sinais na presença de uma planta (uma murta, um bambuzal, um pasto), um animal (um tatu, um urso, um touro, uma cobra, um veado e alguns outros) ou um lugar que existe por causa de alguma presença vital (e neste caso, água e trilhas são os caminhos da história). Essas presenças muitas vezes aparecem, para aqueles que as conhecem, como rastros e murmúrios. O que esses murmúrios e traços dizem ao tecido da memória? Seria possível falar sobre memórias vegetais sem nos restringirmos ao conhecimento botânico? Seria possível reconstruir memórias animais sem nos isolarmos em fábulas ou símbolos? E o que dizer da inusitada confluência de caminhos e memórias, se é verdade que plantas e animais caminham? Seria possível que ambos os lados também estivessem contando a história um ao outro como um caminho de rastros e folhas mortas, e que essa fosse uma maneira geral de contar coisas e criar memórias para a vida? E como tal memória seria escrita se não com múltiplas coautorias ou pelo menos com a autoria descentralizada de pesquisadores amanuenses? Por fim, de que maneiras ocorre a relação entre história, tempo e ambiente natural? Como navegamos pela memória, pelos vestígios e pelo que chamamos de “cultura material”?

Encontrar vestígios também é reconstruir e contar histórias. Neles são encontrados detalhes da vida dos animais. Em diferentes lugares e épocas, essas histórias foram contadas como fonte de inspiração e instrução para viver uma vida melhor. Não como metáforas para a virtude, como as fábulas são geralmente entendidas, mas como lições que podemos aprender de uma experiência concreta e prática.

No campo, o movimento dos galhos, a passagem do vento contra a grama alta, ou o estalar dos canaviais que crescem sob o sol escaldante ou se contraem à noite, a queda brusca de uma árvore subjugada por uma planta parasita voraz que as destrói, provocam murmúrios, quando não gritos. O que dizem esses murmúrios e esses gritos? Que memórias elas contam?

Convidamos a submissão de artigos, ensaios e estudos, que podem ser colaborativos ou de autoria exclusiva, desde que envolvam plantas e animais para contar suas histórias e memorializá-los. Esperamos textos escritos por muitas extremidades (para não dizer por várias mãos) e com ramificações diversas. Devemos responder à natureza complexa da vida que se refaz em surtos. As ciências sociais registraram essas histórias em que plantas e animais aparecem como adereços da memória, mas não pararam para considerá-las com a generosidade suficiente. Vivemos em uma época de crise da vida em que tudo parece ser monocultura, escrita agroindustrial ou carne repentinamente cultivada e insubstancial: onde o mundo da vida parece ter sido reduzido às combinações genéticas que padronizam a paisagem e a comida. Acreditamos que é necessário prestar atenção nelas e levá-las a sério, para ver se conseguimos conversar com elas para que possamos ouvir e ver de maneiras diferentes.

A vida pode ser refeita em composições criativas e generosas e está sempre contando uma história. Certamente, para ter se tornado tão diversa, era necessária a existência de muitas memórias diferentes. Quais são essas memórias mais que humanas que podemos reconhecer nos rastros e murmúrios das folhas caídas? Com esta edição de Memorias disidentes esperamos oferecer contribuições que nos ajudem a reconhecer as variadas formas de vida que se espalham em murmúrios e deixam rastros.